quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Um pouco sobre um lutador chamado Aldo Santos


Conheci o Professor Aldo Santos pouco antes de 2007, num evento na Câmara Municipal de São Bernardo do Campo. Foram apenas um cumprimento, um sorriso e um aperto de mão.

Pouco mais tarde, o reencontrei na primeira Reunião de Representantes de Escola da Subsede da Apeoesp de São Bernardo do Campo, no ano de 2007. Estávamos, naquele momento, em organizações políticas diferentes. Mas foi impossível não reparar  na capacidade de liderança, na fala cheia de coragem, na firmeza daquele que viria a ser um forte adversário político no sindicato durante tantos anos.

O tempo passou e a vida nos colocou frente a frente de um outro modo. Fui atacada covardemente por forças que operam contra aqueles que lutam com a sinceridade que qualquer um que se pretende minimamente revolucionário deve ter.

E quem estava lá para defender a justiça? Aldo Santos. A seu modo impassível, mais uma vez pude ver o Professor Aldo abrir a boca para proferir palavras em nome de quem entrega a vida para a luta. Este episódio foi um divisor de águas.

Não que eu não o respeitasse antes disso. Não que eu já não conhecesse a sua tão corajosa história de luta. Não que eu já não reconhecesse a sua liderança. Mas os "mares revoltos da História" nos colocaram, a partir dali, do mesmo lado organizativo.

Talvez poucos reparem, mas por detrás de suas falas firmes e uma coragem que poucos carregam, existe um fotógrafo, um escritor, um cultivador de flores, um pai, um avô, um grande amigo.

Hoje posso dizer com muito orgulho, que estou na luta da classe trabalhadora ombro a ombro com ele. Afinal, ele não soltou a minha mão num momento muito complicado. Agora, sou eu que não solto a mão dele.  

Professora Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel 




segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Se me deixam falar


   Como diria o poeta Maiakovski: "O mar da história é agitado".



    Passei 20 anos da minha vida procurando por este livro, do qual tomei conhecimento na faculdade numa aula da disciplina de América IV, se não me falha a memória. A única vez que o encontrei, foi num encontro regional ou nacional de estudantes de História, ou num Congresso da UNE, não me lembro mais. Mas eu não tinha dinheiro para comprar. Era comprar comida ou o livro.


   Sábado último passado, o ex presidente Lula citou a obra durante o seu discurso em frente ao sindicato dos metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo.    Obviamente, toda esta história saltou à memória.

  Horas mais tarde, no mesmo dia, compareci a um Sarau promovido por pessoas ligadas à área da saúde alinhadas com a terapêutica da arte e do encontro preconizada por Nise da Silveira. Eis que encontro o livro à venda pelo valor simbólico de R$5,00. Que felicidade e que coincidência!

  Ontem, domingo, rumo a um encontro de família, viajei de trem enquanto começava a ler a obra. E pensando como a situação na Bolívia está diferente dos anos 70.

No retorno para Caieiras, sacolejando novamente no trem, tomo conhecimento do Golpe na Bolívia. Um claro e evidente ataque à democracia e ao povo boliviano.

Qualquer erro ou crítica ao governo de Evo Morales não apagará jamais o fato do Golpe e a violência institucional e militar, junto ao terrorismo de Estado.

  Senti mais do que o sacolejar do trem, senti as ondas do mar revolto da história descritas pelo poeta. Em poucas horas, a soltura de Lula, o discurso dele citando o livro, o encontro deste no sebo, o início de sua leitura, e o conhecimento do golpe na Bolívia.

  Que o povo boliviano tenha forças para resistir. Que chegue ajuda humanitária, que alguém faça algo para barrar a barbárie que se instalou no país de nuestros hermanos.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Por que defender o povo curdo?


Por que defender o povo Curdo?




Quem são os curdos?

Os curdos são um povo (e uma nação) de origem milenar, com registros escritos da sua língua e da sua existência desde a Idade Antiga na região do Oriente Médio.

Onde vivem?

Os curdos sofrem com o grave problema de serem um povo sem um país. Existem milhões de curdos espalhados pela Turquia, pelo Irã, pela Armênia, pelo Iraque e pela Síria. Nestes diferentes países, são minoria étnica e a sua vida, cultura, língua, comunicação e modo de vida sofrem diferentes restrições. Talvez o caso mais grave seja na Turquia, onde vive a maioria dos curdos que permanecem na Ásia, com população aproximada de 14 milhões, o que constituiu praticamente metade deste povo. Ao final da Primeira Guerra Mundial (e com o fim do Império Turco), um tratado de 1919 deveria garantir um Estado Curdistão, mas isso não foi cumprido em tratado posterior. Milhares de curdos foram mortos, e outros milhares são perseguidos até hoje, tendo suas vilas literalmente "varridas do mapa".

Não foi diferente no Irã, durante a Revolução Iraniana (1979), e até hoje os ativistas pelos direitos humanos são perseguidos, presos e até mortos. A vigilância do governo iraniano sobre eles é constante.

Na Síria, o caso não é muito diferente. No país em que nenhum partido político é permitido, os curdos sofrem severas restrições, como a proibição de registrarem seus filhos com nomes de sua língua pátria, proibição de publicações e livros em curdo, direito à nacionalidade síria negado e privados de qualquer direito social.

Também existem curdos vivendo na Armênia e no Azerbaijão. Em nenhum destes países vivem em paz, tendo sofrido ataques e deportações. Existe uma importante parcela do povo curdo que emigrou para a Rússia, a Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Canadá.

Como é a cultura curda e qual a importância deste povo?

Entre os curdos, as mulheres gozam de grande liberdade. De maioria muçulmana, as curdas não são obrigadas a usar véu, cobrir o rosto ou usar roupas que escondam o corpo. Pelo contrário, usam calças, fazem parte dos corajosos exércitos que enfrentaram o famigerado ISIS (Estado Islâmico), assumem posições de comando e têm grande autonomia na sociedade deste povo. Além disso, são inegáveis os seus posicionamentos feministas, ecológicos e democráticos, principalmente em Rojava,  comunidade autônoma localizada no Norte-Nordeste da Síria.

O que acontece com os curdos neste momento?

Basicamente, no enfrentamento direto com o ISIS, contribuiu contra a barbárie deste grupo violento, misógino, homofóbico, que hoje agoniza e visava um governo teocrático radical aos moldes do pior que existiu na Idade Média, incluindo execuções ao vivo ("lives") de jornalistas e opositores.

A retirada dos EUA da Síria (que não era uma ocupação militar como a do Iraque, por exemplo) jogou os curdos à própria sorte contra o Exército Turco e contra o ISIS. Em mais uma manifestação de desprezo aos direitos humanos, o Presidente Donald Trump pronunciou um discurso carregado de ironia  sanguinária, ao declarar que "Os curdos não nos ajudaram na Normandia" (como se isso fosse possível) - referindo-se ao "Dia D" em 1944, já na fase final da Segunda Guerra Mundial, quando o exército estadunidense desembarcou na Normandia (França) e iniciou uma importante derrocada dos exércitos nazistas e fascistas. Ao se pronunciar desta forma, Trump mais uma vez brincou com a morte de milhares de seres humanos, como se fosse uma verdadeira "rifa". Muitos membros do ISIS estão presos sob o poder dos curdos, que agora correm o risco de enfrentar a "ressurreição" desta violenta organização, enquanto sofre ataques do exército turco.

Apoiar o povo curdo é apoiar um governo democrático, apoiar a emancipação feminina e a ecologia. Apoiar o povo curdo é estar do lado contrário da barbárie, da morte, da devastação, e a favor da autodeterminação de cada povo.

Viva o povo curdo e a sua luta pela democracia e por sua própria continuidade!!
Abaixo a política imperialista do governo estadunidense, que serve somente aos seus próprios interesses econômicos e trata com desprezo a vida e a democracia. 



Professora Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel *

*Bacharel com Licenciatura Plena em História pela PUC - SP
Professora de Educação Básica II na Rede Estadual de São Paulo, na E.E. Jardim Silvia II, Francisco Morato/SP.


segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Por onde andas, querida História?


     Luzia andava pelas bandas das Gerais, antes de existirem as Minas. Nada era fácil, a sobrevivência era um esforço que beirava a sorte, além do esforço. Sua vida não durou muito, talvez uns vinte anos.  Seu corpo ficou calado numa gruta, até ser encontrado doze mil anos mais tarde e ganhar o título de "primeira brasileira". Seu crânio foi ostentado como grande descoberta, alterou o desenho de rotas migratórias e colocou o Brasil num destaque arqueológico internacional.

     Sha Amum Em Su cantava em Karnak, no templo do deus Amon, oito séculos antes de Cristo. Quando morreu, a tradição religiosa de seu povo cuidou para que o corpo da sacerdotisa cantora fosse preservado e sua garganta protegida por um tipo de resina para que talvez continuasse a cantar além da existência que conhecera. Milhares de anos depois, sua múmia foi trocada por um livro para que um imperador que admirava o Egito a trouxesse para casa.

     Uma mulher que vivia na Ilha de Marajó, perto da foz do Rio Amazonas, trabalhava em cerâmica artefatos cheios de vida e graciosidade. Cada detalhe era planejado muito tempo antes de existir o conceito de funcional. Cada peça possuía enorme identidade, muito antes da Antropologia. Seu trabalho permaneceu conservado por quase dois mil anos.    

   Um artista desconhecido, cheio de talento, pintou afresco um lindo mural desenhando um pássaro lá em Pompeia, no mesmo século de Cristo. Sua obra resistiu a uma trágica erupção vulcânica e chegou ao Brasil, quase dois mil anos depois, como um presente.

     Bertha Maria Julia cresceu em uma sociedade cujas ciências eram normalmente para os homens. Mulheres casadouras cosiam bordados. Mas Bertha não queria se casar, Bertha queria era ser Lutz, estudar anfíbios e participar das eleições. Lutz - a filha, e não o pai - sobreviveu a um golpe de Estado em 1937, a partir do qual nem mesmo os homens podiam votar, chefiando um Departamento de Botânica e cravando seu nome na ciência internacional.

     Em setembro de 2018 d.C. todos morreram juntos, pela segunda vez. Sim, todos arderam numa segunda morte. As labaredas da destruição da História consumiram tesouros da humanidade. Biológicos, antropológicos, históricos, artísticos.

     Morreram do quê?

     Acidente?

     Tragédia?

     Não.

   Morreram assassinados, calcinados por quem não os queria.

   Nada sobrevive aos interesses perversos do capital. Nem Luzia.


Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel, Bacharel e Licenciada em História.
Professora na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.



sábado, 6 de janeiro de 2018

Qual Anita? A do bumbum ou a da baioneta? (ou o que o Brasil tem a mostrar?)


         "Dar um Google" com o nome Anita - com um "t"- mostra como primeira opção o nome "Anitta", com os dois "tes". E o navegante - que clicar em cima do nome - verá o clipe oficial do sucesso "Paradinha". Mas, se o mesmo obervar as opções seguintes, irá encontrar Anita Garibaldi, seguida de Anita Malfatti.
         Anitta (a do bumbum), não ganha prêmio em nada de originalidade. Sensualização é coisa velha em videoclipe. Madonna já fazia isso nos anos 80 com coreografia muito mais elaborada. Filmar em favela também é batido. Até Michael Jackson gravou no morro Dona Marta, também com uma coreografia muito mais criativa. O grupo de rap nacional Racionais MC´s que o diga neste assunto, com sua larga experiência de gravar em favelas, em suas próprias comunidades, como o Capão Redondo e o Jardim Ângela.

"Quero um futuro melhor, não quero
morrer assim, 
num necrotério qualquer, um indigente, 
sem nome e sem nada, 
um homem na estrada."
Mano Brown, 1993

("Homem na Estrada" usa "samples" da canção "Ela Partiu", de Tim Maia.)

"Ela partiu, partiu
E nunca mais voltou
Ela sumiu, sumiu
E nunca mais voltou"

Tim Maia, 1975
        
         Fazer funk cantado em língua portuguesa também não é nada novo. Tim Maia gravou funk em língua portuguesa e assim seu nome na História. Voltando do exterior no início dos anos 60, trouxe na mala soul, disco e funk. Sim, também o funk. Foi largamente relatado por amigos pessoais do cantor e compositor, que não era incomum o mesmo ligar de madrugada, com a música "Descobridor dos Sete Mares" ao fundo, empolgadíssimo, dizendo para ouvirem o que era funk de verdade. E era mesmo. Sobrava identidade na sua música, uma das premissas para diferenciar arte de produto/fetiche para comercialização. Isso não era sem motivo. Negro, nascido e criado em um cortiço na Tijuca no Rio de Janeiro, emigrou para os EUA em 1959, quando seu pai morreu. Iniciou um aprendizado que lhe valeria para o resto da vida, gravando seu estilo e sua voz na música brasileira. Registrou a sua total independência, pois foi um dos primeiros artistas brasileiros a ter sua própria gravadora, quebrando com o sistema e inovando corajosamente. E não são raras as suas músicas que trazem na letra a "arte" de tocar em assuntos proibidos até então, em plena ditadura militar, como "Acende o farol" e "Chocolate" (sim, Tim Maia curtia uma erva e isso também não é novidade).

"Não quero chá, não quero café
Não quero Coca-Cola
Me liguei no chocolate
Eu me liguei!
Só quero chocolate
Não adianta vir com Guaraná
Pra mim é chocolate
O que eu quero beber"

Tim Maia, 1971


         A Anita Garibaldi (a da baioneta), viveu sabe se lá à frente de quantos tempos. Baioneta era uma arma - hoje ultrapassada - para ferir/furar encaixada em outra arma, de fogo. Anita Garibaldi deve ter visto muitas nas guerras das quais participou ativamente. Catarinense, abolicionista, largou o marido com quem foi forçada pela família a se casar, o que no século XIX era garantia de um falatório de "mulher indecente". Ainda mais fugindo para se juntar a um revolucionário estrangeiro, com fama de corsário, chamado Garibaldi. Pois Anita teve coragem o suficiente para romper padrões e revolucionar atitudes, gravando seu nome com fogo e sangue na História, em busca de liberdade pessoal, política e humanista. Pagou o preço com a própria vida, morrendo doente e em fuga aos 27 anos de idade.
         Ah, mas por que a Anita da baioneta apareceu aqui? Porque falar o nome Anita atualmente, leva na maior na parte das vezes à Anitta do bumbum. Qual o problema? Esta Anitta (a do bumbum) ser tratada por incautos como mulher promotora de empoderamento feminino, revolucionária por filmar na favela, levar uma música brasileira aos rankings internacionais, na voz de uma mulher, que ainda mostrou um bumbum com celulite, e um longo etc enaltecendo sua música, postura, videoclip, como grandes novidades. 

         Vocabulário, cultura e liberdade

         "Bumbum",  é uma palavra legitimamente brasileira, uma versão infantilizada da palavra "bunda", que remonta ao quimbundo trazido de Angola e Luanda, largamente falado no Brasil até o século XVIII. Cantar a palavra em  uma música comercializada internacionalmente, poderia ser afirmativo da cultura linguística brasileira, riquíssima de variadas origens de seu vocábulo, se não fosse o contexto.
         Outro aspecto que também poderia ser um ponto forte, é a crítica feita logo no início do videoclipe "Vai Malandra", ao PL 1256. Atualmente arquivado, este projeto de lei pretendia criminalizar o Funk como estilo musical. Qualquer proibição neste sentido é discriminatória, autoritária e censurante para qualquer sociedade que se pretenda minimamente livre e democrática. Simplesmente proibir um estilo musical qualquer é inaceitável frente à liberdade de expressão.
         Por outro lado, algo que também não é novidade, é que os bailes funks são muitas vezes a única oportunidade de lazer e confraternização para jovens de diversas áreas mais empobrecidas e miseráveis. Resultado direto da ausência do poder público e do papel que deveria ser cumprido pelo Estado, de incentivar, garantir, financiar e estruturar locais tanto de manifestações artísticas como de recreação e práticas esportivas.
         Ao mesmo tempo, bailes funks são palco de oportunidades infinitas para atividades criminosas, como a venda de drogas ilícitas. Outro fenômeno alarmante é o fechamento de ruas aliado a um volume que retira o direito ao sono de milhares de trabalhadores - casos que não são isolados, e com maior força e poder onde o Estado não chega e entrega a vida de milhares de seres humanos à própria sorte.  
         Disponíveis na internet, existem vídeos da "Roda de Funk", realizada na quadra da tradicional Escola de Samba Salgueiro. Homens e mulheres participam livremente. Dentre as mulheres, algumas com nomes um tanto quanto conhecidos, como Tati Quebra Barraco e Mc Carol. Caso este texto citasse trechos de suas composições ali apresentadas, teria que acompanhar um alerta de "proibido para menores de 18 anos". Motivo? Descrição explícita de relações sexuais. Não implícita. Não erótica. Não literária. Apenas literal.
         Mc Carol, por sua vez , chegou a gravar algo diferente disso, mas ao que tudo indica, não teve como objetivo levar isto adiante:

        "Professora me desculpe
         Mas agora vou falar
         Esse ano na escola
         As coisas vão mudar

        Nada contra ti
        Não me leve a mal
        Quem descobriu o Brasil
        Não foi Cabral

       Pedro Álvares Cabral
       Chegou 22 de abril
       Depois colonizou
       Chamando de Pau-Brasil
       Ninguém trouxe família
       Muito menos filho
       Porque já sabia
       Que ia matar vários índios

       Treze Caravelas
       Trouxe muita morte
       Um milhão de índio
       Morreu de tuberculose
       Falando de sofrimento
       Dos tupis e guaranis
       Lembrei do guerreiro
       Quilombo Zumbi

      Zumbi dos Palmares
      Vitima de uma emboscada
      Se não fosse a Dandara
      Eu levava chicotada"

         Seria de grande serventia à educação de milhares e milhares de jovens, que são totalmente familiarizados com as batidas do funk, caso mais letras deste tipo aparecessem no cenário. Poderiam conscientizar a respeito não somente da História, mas sobre a identidade toda de um povo e as possibilidades infinitas de organização, libertação e auto determinação. No entanto, não é o caso da maioria das letras. Sejamos sinceros: rebolar por rebolar, gemer e descrever publicamente suas preferências íntimas, não acaba com a desnutrição, com o analfabetismo, com a violência, com a usurpação dos impostos.

         Liga do Funk

“Boladão peitei o mundo/ deixei o sistema maluco/ tentaram me alienar/ mas eu criei o meu mundo”,  Mc Poneis

         Enquanto isso, existe um projeto em pleno curso na cidade de São Paulo visando justamente o inverso. A "Liga do Funk" se propõe como espaço formador de Mc´s. E não para por aí. Uma apuração inicial detecta uma proposta maior de politização e diálogos com outros movimentos, como o Hip Hop - que muito já sofreu com o preconceito, e ainda sofre. Não é incomum ouvir que "rap é música de bandido", um senso comum adotado por quem desconhece por completo este cenário.
         A Liga do Funk já teve como convidado o rapper Emicida, que carrega nas suas letras uma qualidade poética inegável em linguagem popular:

"Por mais que você corra, irmão
Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o xis da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala, Jão
Bomba relógio prestes a estourar"

Emicida

         Mas então...

         Milhares de sites associam o Brasil ao turismo sexual. Anitta filmou seu videoclip em um destino muito requisitado por estrangeiros que chegam ao Rio, a "exótica" favela no morro com vistas à uma natureza exuberante.
         Anitta não liberta e nem revoluciona. Pelo contrário, reafirma uma série de clichês, estereótipos e tragédias nacionais. No trecho em inglês de sua música "Vai Malandra", podemos encontrar:
         "Veja meu zíper colocar essa bunda nele
         Hipnotizado pelo jeito que você se mexe
         Não posso mentir, estou tentando te ver nua
         Anitta, bebê, estou tentando dar uns tapas
         Eu posso dar isso para você, você pode aguentar


        Já tá louca, bebendo
        Tão solta, envolvendo eu to vendo
        Não Para não"

         Antes de mais nada é necessário identificar qual o teor do conjunto da obra: uma letra erótica que beira o explícito. Beira, porque implicitamente, descreve um homem estrangeiro prestes a ter uma relação sexual com uma brasileira bêbada no morro da "exotic tour".
         Puritanismo? Definitivamente não. Apenas uma análise e uma caracterização mais aprofundada do que realmente se trata.
         Não se trata de libertação da mulher, empoderamento, exaltação de origens. Anitta nem do morro veio (veio de um bairro de classe média baixa chamado Honório Gurgel), apesar desta ser uma questão bem secundária. O principal é que ela vende um combinado de produtos bem manjados (passeio na favela, mulheres da cultura funk, exaltação do rebolado, atendimento aos possíveis desejos de homens que desembarcam no Brasil, o "país exótico" da sensualidade, do prazer fácil, do verão desnudo).
         Não existiria problema algum em uma manifestação que não se propõe à politização, que objetiva apenas o lazer, a recreação. Quem não gosta e não precisa de uma festa?
         O problema está em reafirmar nosso país com todos os "ques" apontados mais acima, e mais do que nunca, em um momento notório de sucateamento e até fechamento de universidades públicas, cortes infindáveis nas diversas áreas de conhecimento e pesquisa, retirada de históricos direitos trabalhistas...
        
         Mas e o bumbum com celulite, as mulheres obesas e Trans que aparecem no clip?

         Quem garante que aquele bumbum é mesmo da Anitta? Uma mulher publicamente obcecada por plásticas, com o corpo todo "malhado"...seria mesmo ela?
         E as moças todas na laje, exibindo corpos dentro do "padrão" estético ditado no Brasil?
         E o fato de que Anitta canta a menor parte da música, ficando a maior parte com as vozes masculinas que exclusivamente ditam o que realmente deve acontecer?
         Enquanto Anitta brinca com o bumbum...

         " Na favela onde tudo acontece
           E todo o Brasil está sentindo isso

           Já tá louca, bebendo
           Tão solta, envolvendo eu to vendo
           Não Para não"

         E o que acontece na favela...

         Morar em uma comunidade não tem nada de glamoroso. Tiros, dificuldades de acesso, inacessibilidade com automóveis em vários pontos, crianças morrendo por balas perdidas ou achadas, toques de recolher, polícia invadindo com armamento pesado, grupos rivais infernizando milhares de pessoas que lutam todos os dias para sobreviver.

         E a situação da mulher no Brasil...
         Um estupro a cada 11 minutos. Meio milhão de estupros ao ano. 70% das vítimas são crianças e adolescentes. 10 estupros coletivos por dia (notificados). Menos de 16% dos acusados são presos.  No estado do Rio de Janeiro, há um caso de estupro em escola a cada cinco dias e 62% das vítimas tem menos de 12 anos. Sem entrar na seara dos feminicídios e da violência doméstica.

         Anitta revoluciona em que mesmo?

         Cada leitor é livre para produzir as suas próprias reflexões e conclusões ou não conclusões. Longe disso, talvez o presente texto poderia ser acusado injustamente de autoritário, mesmo após tanto apresentar e dialogar com épocas, lugares, estilos e propostas tão diferentes.
         Pedagógico, histórico, didático, informativo, reflexivo. Não importa. O que importa de verdade, é o que cada um objetiva para sua vida. Mas para que isso aconteça em plenitude, é necessária uma consciência de si mesmo e do mundo em que se vive. E isso não é algo que caia do céu como a chuva, é algo construído social e historicamente.
         Mas para seu desfecho, uma estrela ficará a brilhar. Uma estrela jovem, brasileira, artista e arteira, que sacrifica dias e noites a divulgar sua arte, sincera e cheia de força. Pode ser apenas mais uma entre tantas, mas com certeza é mais uma entre tantas que poderiam ter muito mais espaço do que Anitta. Fica a dica. Lurdez da Luz.

"Então irmão é só focar
Então irmão não pode parar
Tem que se adiantar
Em Parelheiros ou Paquetá
Advinha quem vem pra jantar?
Quando morrer vai aquetar
Por que agora é nois que tá, tá, tá
Não tem mais como duvidar
Do Pará ao Panamá
O treme terra vai animar
Virou e quem viver verá
Querer sempre e muito mais
Bom só ta assim pros demais
Fazer jus aos ancestrais
Seguir sem rivais
Somos únicos, porém iguais
Então pra que o leva e traz?
Não ta gostando de uma fita
Então não fala, faz
Aqui não dá pra viver em paz
Só que amor nunca é demais
Desejo longa vida a todos que são reais
Igual a mim tem um monte
Pronto pra linha de frente
Que enxerga o horizonte
Homem e mulher combatente
A levada é pra levante
A mensagem é pra levante
Se ta sentando então levante
Tamo além vamo adiante

Bate no peito com respeito (eu quero ver)
Bate no peito com respeito (tamos aê)
Bate no peito com respeito (eu quero ouvir)
Bate, bate, bate no peito com respeito

O gueto injeta sub grave
Nas veias abertas da américa
E quando não bate na trave
Bate no vento e na bunda e no pé
Entra comigo vem junto na nave
Sentir a cidade amanhecer
A brisa é suave essa é a chave
Não aceita menos para não merecer
O que eu quero é ver
Meu povo com poder
Pra mudar pra vencer
A violência covarde
A falta de direito
O excesso de dever
E de fato viver não só sobreviver
Igual a mim tem um monte
Pronto pra linha de frente
Que enxerga o horizonte
Homem e mulher combatente
A levada é pra levante
A mensagem é pra levante
Se ta sentando então levante
Tamo além vamo adiante"


Lurdez da Luz 


Um pouco sobre um lutador chamado Aldo Santos

Conheci o Professor Aldo Santos pouco antes de 2007, num evento na Câmara Municipal de São Bernardo do Campo. Foram apenas um cumprimento,...