"Dar um Google" com o nome Anita - com um
"t"- mostra como primeira opção o nome "Anitta", com os dois
"tes". E o navegante - que clicar em cima do nome - verá o clipe
oficial do sucesso "Paradinha". Mas, se o mesmo obervar as opções
seguintes, irá encontrar Anita Garibaldi, seguida de Anita Malfatti.
Anitta (a do bumbum), não ganha prêmio em nada de
originalidade. Sensualização é coisa velha em videoclipe. Madonna já fazia isso
nos anos 80 com coreografia muito mais elaborada. Filmar em favela também é
batido. Até Michael Jackson gravou no morro Dona Marta, também com uma
coreografia muito mais criativa. O grupo de rap nacional Racionais MC´s que o
diga neste assunto, com sua larga experiência de gravar em favelas, em suas
próprias comunidades, como o Capão Redondo e o Jardim Ângela.
"Quero um futuro melhor, não quero
morrer assim,
num necrotério qualquer, um indigente,
sem nome e sem nada,
um homem na estrada."
Mano Brown, 1993
("Homem na Estrada" usa "samples" da
canção "Ela Partiu", de Tim Maia.)
"Ela
partiu, partiu
E
nunca mais voltou
Ela
sumiu, sumiu
E
nunca mais voltou"
Tim
Maia, 1975
Fazer funk cantado em língua portuguesa também não é nada
novo. Tim Maia gravou funk em língua portuguesa e assim seu nome na História. Voltando
do exterior no início dos anos 60, trouxe na mala soul, disco e funk. Sim, também
o funk. Foi largamente relatado por amigos pessoais do cantor e compositor, que
não era incomum o mesmo ligar de madrugada, com a música "Descobridor dos
Sete Mares" ao fundo, empolgadíssimo, dizendo para ouvirem o que era funk
de verdade. E era mesmo. Sobrava identidade na sua música, uma das premissas
para diferenciar arte de produto/fetiche para comercialização. Isso não era sem
motivo. Negro, nascido e criado em um cortiço na Tijuca no Rio de Janeiro,
emigrou para os EUA em 1959, quando seu pai morreu. Iniciou um aprendizado que
lhe valeria para o resto da vida, gravando seu estilo e sua voz na música
brasileira. Registrou a sua total independência, pois foi um dos primeiros
artistas brasileiros a ter sua própria gravadora, quebrando com o sistema e
inovando corajosamente. E não são raras as suas músicas que trazem na letra a
"arte" de tocar em assuntos proibidos até então, em plena ditadura
militar, como "Acende o farol" e "Chocolate" (sim, Tim Maia
curtia uma erva e isso também não é novidade).
"Não
quero chá, não quero café
Não
quero Coca-Cola
Me
liguei no chocolate
Eu
me liguei!
Só
quero chocolate
Não
adianta vir com Guaraná
Pra
mim é chocolate
O
que eu quero beber"
Tim
Maia, 1971
A Anita Garibaldi (a da baioneta), viveu sabe se lá à frente
de quantos tempos. Baioneta era uma arma - hoje ultrapassada - para ferir/furar
encaixada em outra arma, de fogo. Anita Garibaldi deve ter visto muitas nas
guerras das quais participou ativamente. Catarinense, abolicionista, largou o
marido com quem foi forçada pela família a se casar, o que no século XIX era
garantia de um falatório de "mulher indecente". Ainda mais fugindo
para se juntar a um revolucionário estrangeiro, com fama de corsário, chamado
Garibaldi. Pois Anita teve coragem o suficiente para romper padrões e
revolucionar atitudes, gravando seu nome com fogo e sangue na História, em
busca de liberdade pessoal, política e humanista. Pagou o preço com a própria
vida, morrendo doente e em fuga aos 27 anos de idade.
Ah, mas por que a Anita da baioneta apareceu aqui? Porque
falar o nome Anita atualmente, leva na maior na parte das vezes à Anitta do
bumbum. Qual o problema? Esta Anitta (a do bumbum) ser tratada por incautos
como mulher promotora de empoderamento feminino, revolucionária por filmar na
favela, levar uma música brasileira aos rankings internacionais, na voz de uma
mulher, que ainda mostrou um bumbum com celulite, e um longo etc enaltecendo
sua música, postura, videoclip, como grandes novidades.
Vocabulário, cultura e liberdade
"Bumbum", é
uma palavra legitimamente brasileira, uma versão infantilizada da palavra
"bunda", que remonta ao quimbundo trazido de Angola e Luanda,
largamente falado no Brasil até o século XVIII. Cantar a palavra em uma música comercializada internacionalmente,
poderia ser afirmativo da cultura linguística brasileira, riquíssima de
variadas origens de seu vocábulo, se não fosse o contexto.
Outro aspecto que também poderia ser um ponto forte, é a
crítica feita logo no início do videoclipe "Vai Malandra", ao PL 1256.
Atualmente arquivado, este projeto de lei pretendia criminalizar o Funk como
estilo musical. Qualquer proibição neste sentido é discriminatória, autoritária
e censurante para qualquer sociedade que se pretenda minimamente livre e
democrática. Simplesmente proibir um estilo musical qualquer é inaceitável
frente à liberdade de expressão.
Por outro lado, algo que também não é novidade, é que os
bailes funks são muitas vezes a única oportunidade de lazer e confraternização
para jovens de diversas áreas mais empobrecidas e miseráveis. Resultado direto
da ausência do poder público e do papel que deveria ser cumprido pelo Estado,
de incentivar, garantir, financiar e estruturar locais tanto de manifestações
artísticas como de recreação e práticas esportivas.
Ao mesmo tempo, bailes funks são palco de oportunidades
infinitas para atividades criminosas, como a venda de drogas ilícitas. Outro
fenômeno alarmante é o fechamento de ruas aliado a um volume que retira o
direito ao sono de milhares de trabalhadores - casos que não são isolados, e
com maior força e poder onde o Estado não chega e entrega a vida de milhares de
seres humanos à própria sorte.
Disponíveis na internet, existem vídeos da "Roda de
Funk", realizada na quadra da tradicional Escola de Samba Salgueiro.
Homens e mulheres participam livremente. Dentre as mulheres, algumas com nomes
um tanto quanto conhecidos, como Tati Quebra Barraco e Mc Carol. Caso este
texto citasse trechos de suas composições ali apresentadas, teria que
acompanhar um alerta de "proibido para menores de 18 anos". Motivo?
Descrição explícita de relações sexuais. Não implícita. Não erótica. Não
literária. Apenas literal.
Mc Carol, por sua vez , chegou a gravar algo diferente
disso, mas ao que tudo indica, não teve como objetivo levar isto adiante:
"Professora
me desculpe
Mas agora vou falar
Esse ano na escola
As
coisas vão mudar
Nada contra ti
Não me leve a mal
Quem descobriu o Brasil
Não foi Cabral
Pedro Álvares Cabral
Chegou
22 de abril
Depois
colonizou
Chamando
de Pau-Brasil
Ninguém
trouxe família
Muito
menos filho
Porque
já sabia
Que ia matar vários índios
Treze
Caravelas
Trouxe
muita morte
Um
milhão de índio
Morreu
de tuberculose
Falando
de sofrimento
Dos
tupis e guaranis
Lembrei
do guerreiro
Quilombo
Zumbi
Zumbi
dos Palmares
Vitima
de uma emboscada
Se
não fosse a Dandara
Eu
levava chicotada"
Seria de grande serventia à educação de milhares e milhares
de jovens, que são totalmente familiarizados com as batidas do funk, caso mais
letras deste tipo aparecessem no cenário. Poderiam conscientizar a respeito não
somente da História, mas sobre a identidade toda de um povo e as possibilidades
infinitas de organização, libertação e auto determinação. No entanto, não é o
caso da maioria das letras. Sejamos sinceros: rebolar por rebolar, gemer e
descrever publicamente suas preferências íntimas, não acaba com a desnutrição,
com o analfabetismo, com a violência, com a usurpação dos impostos.
Liga do Funk
“Boladão
peitei o mundo/ deixei o sistema maluco/ tentaram me alienar/ mas eu criei o
meu mundo”, Mc Poneis
Enquanto isso, existe um projeto em pleno curso na cidade de
São Paulo visando justamente o inverso. A "Liga do Funk" se propõe
como espaço formador de Mc´s. E não para por aí. Uma apuração inicial detecta
uma proposta maior de politização e diálogos com outros movimentos, como o Hip
Hop - que muito já sofreu com o preconceito, e ainda sofre. Não é incomum ouvir
que "rap é música de bandido", um senso comum adotado por quem
desconhece por completo este cenário.
A Liga do Funk já teve como convidado o rapper Emicida, que
carrega nas suas letras uma qualidade poética inegável em linguagem popular:
"Por
mais que você corra, irmão
Pra
sua guerra vão nem se lixar
Esse
é o xis da questão
Já
viu eles chorar pela cor do orixá?
E
os camburão o que são?
Negreiros
a retraficar
Favela
ainda é senzala, Jão
Bomba
relógio prestes a estourar"
Emicida
Mas então...
Milhares de sites associam o Brasil ao turismo sexual.
Anitta filmou seu videoclip em um destino muito requisitado por estrangeiros
que chegam ao Rio, a "exótica" favela no morro com vistas à uma
natureza exuberante.
Anitta não liberta e nem revoluciona. Pelo contrário,
reafirma uma série de clichês, estereótipos e tragédias nacionais. No trecho em
inglês de sua música "Vai Malandra", podemos encontrar:
"Veja
meu zíper colocar essa bunda nele
Hipnotizado pelo jeito que você se
mexe
Não posso mentir, estou tentando te
ver nua
Anitta, bebê, estou tentando dar uns
tapas
Eu posso dar isso para você, você pode
aguentar
Já tá louca, bebendo
Tão solta, envolvendo eu to vendo
Não Para não"
Antes
de mais nada é necessário identificar qual o teor do conjunto da obra: uma
letra erótica que beira o explícito. Beira, porque implicitamente, descreve um
homem estrangeiro prestes a ter uma relação sexual com uma brasileira bêbada no
morro da "exotic tour".
Puritanismo?
Definitivamente não. Apenas uma análise e uma caracterização mais aprofundada
do que realmente se trata.
Não
se trata de libertação da mulher, empoderamento, exaltação de origens. Anitta
nem do morro veio (veio de um bairro de classe média baixa chamado Honório
Gurgel), apesar desta ser uma questão bem secundária. O principal é que ela vende
um combinado de produtos bem manjados (passeio na favela, mulheres da cultura
funk, exaltação do rebolado, atendimento aos possíveis desejos de homens que
desembarcam no Brasil, o "país exótico" da sensualidade, do prazer
fácil, do verão desnudo).
Não
existiria problema algum em uma manifestação que não se propõe à politização,
que objetiva apenas o lazer, a recreação. Quem não gosta e não precisa de uma
festa?
O
problema está em reafirmar nosso país com todos os "ques" apontados
mais acima, e mais do que nunca, em um momento notório de sucateamento e até
fechamento de universidades públicas, cortes infindáveis nas diversas áreas de
conhecimento e pesquisa, retirada de históricos direitos trabalhistas...
Mas e o bumbum com celulite, as mulheres obesas
e Trans que aparecem no clip?
Quem
garante que aquele bumbum é mesmo da Anitta? Uma mulher publicamente obcecada
por plásticas, com o corpo todo "malhado"...seria mesmo ela?
E as
moças todas na laje, exibindo corpos dentro do "padrão" estético ditado
no Brasil?
E o
fato de que Anitta canta a menor parte da música, ficando a maior parte com as
vozes masculinas que exclusivamente ditam o que realmente deve acontecer?
Enquanto
Anitta brinca com o bumbum...
"
Na favela onde tudo acontece
E todo o Brasil está sentindo isso
Já tá louca, bebendo
Tão solta, envolvendo eu to vendo
Não Para não"
E o que acontece na favela...
Morar em uma comunidade não tem
nada de glamoroso. Tiros, dificuldades de acesso, inacessibilidade com
automóveis em vários pontos, crianças morrendo por balas perdidas ou achadas,
toques de recolher, polícia invadindo com armamento pesado, grupos rivais
infernizando milhares de pessoas que lutam todos os dias para sobreviver.
E a situação da mulher no Brasil...
Um estupro a cada 11
minutos. Meio milhão de estupros ao ano. 70% das vítimas são crianças e
adolescentes. 10 estupros coletivos por dia (notificados). Menos de 16% dos
acusados são presos. No estado do Rio de
Janeiro, há um caso de estupro em escola a cada
cinco dias e 62% das vítimas tem menos de 12 anos. Sem entrar na seara dos feminicídios e
da violência doméstica.
Anitta
revoluciona em que mesmo?
Cada
leitor é livre para produzir as suas próprias reflexões e conclusões ou não
conclusões. Longe disso, talvez o presente texto poderia ser acusado
injustamente de autoritário, mesmo após tanto apresentar e dialogar com épocas,
lugares, estilos e propostas tão diferentes.
Pedagógico,
histórico, didático, informativo, reflexivo. Não importa. O que importa de
verdade, é o que cada um objetiva para sua vida. Mas para que isso aconteça em
plenitude, é necessária uma consciência de si mesmo e do mundo em que se vive.
E isso não é algo que caia do céu como a chuva, é algo construído social e
historicamente.
Mas
para seu desfecho, uma estrela ficará a brilhar. Uma estrela jovem, brasileira,
artista e arteira, que sacrifica dias e noites a divulgar sua arte, sincera e
cheia de força. Pode ser apenas mais uma entre tantas, mas com certeza é mais
uma entre tantas que poderiam ter muito mais espaço do que Anitta. Fica a dica.
Lurdez da Luz.
"Então
irmão é só focar
Então
irmão não pode parar
Tem
que se adiantar
Em Parelheiros
ou Paquetá
Advinha
quem vem pra jantar?
Quando
morrer vai aquetar
Por
que agora é nois que tá, tá, tá
Não
tem mais como duvidar
Do Pará
ao Panamá
O
treme terra vai animar
Virou
e quem viver verá
Querer
sempre e muito mais
Bom só
ta assim pros demais
Fazer
jus aos ancestrais
Seguir
sem rivais
Somos
únicos, porém iguais
Então
pra que o leva e traz?
Não ta
gostando de uma fita
Então
não fala, faz
Aqui
não dá pra viver em paz
Só que
amor nunca é demais
Desejo
longa vida a todos que são reais
Igual a
mim tem um monte
Pronto
pra linha de frente
Que
enxerga o horizonte
Homem
e mulher combatente
A
levada é pra levante
A
mensagem é pra levante
Se ta
sentando então levante
Tamo
além vamo adiante
Bate
no peito com respeito (eu quero ver)
Bate
no peito com respeito (tamos aê)
Bate
no peito com respeito (eu quero ouvir)
Bate,
bate, bate no peito com respeito
O
gueto injeta sub grave
Nas
veias abertas da américa
E
quando não bate na trave
Bate
no vento e na bunda e no pé
Entra
comigo vem junto na nave
Sentir
a cidade amanhecer
A
brisa é suave essa é a chave
Não
aceita menos para não merecer
O que
eu quero é ver
Meu
povo com poder
Pra
mudar pra vencer
A
violência covarde
A
falta de direito
O
excesso de dever
E de
fato viver não só sobreviver
Igual
a mim tem um monte
Pronto
pra linha de frente
Que
enxerga o horizonte
Homem
e mulher combatente
A
levada é pra levante
A
mensagem é pra levante
Se ta
sentando então levante
Tamo
além vamo adiante"
Lurdez
da Luz