segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Por onde andas, querida História?


     Luzia andava pelas bandas das Gerais, antes de existirem as Minas. Nada era fácil, a sobrevivência era um esforço que beirava a sorte, além do esforço. Sua vida não durou muito, talvez uns vinte anos.  Seu corpo ficou calado numa gruta, até ser encontrado doze mil anos mais tarde e ganhar o título de "primeira brasileira". Seu crânio foi ostentado como grande descoberta, alterou o desenho de rotas migratórias e colocou o Brasil num destaque arqueológico internacional.

     Sha Amum Em Su cantava em Karnak, no templo do deus Amon, oito séculos antes de Cristo. Quando morreu, a tradição religiosa de seu povo cuidou para que o corpo da sacerdotisa cantora fosse preservado e sua garganta protegida por um tipo de resina para que talvez continuasse a cantar além da existência que conhecera. Milhares de anos depois, sua múmia foi trocada por um livro para que um imperador que admirava o Egito a trouxesse para casa.

     Uma mulher que vivia na Ilha de Marajó, perto da foz do Rio Amazonas, trabalhava em cerâmica artefatos cheios de vida e graciosidade. Cada detalhe era planejado muito tempo antes de existir o conceito de funcional. Cada peça possuía enorme identidade, muito antes da Antropologia. Seu trabalho permaneceu conservado por quase dois mil anos.    

   Um artista desconhecido, cheio de talento, pintou afresco um lindo mural desenhando um pássaro lá em Pompeia, no mesmo século de Cristo. Sua obra resistiu a uma trágica erupção vulcânica e chegou ao Brasil, quase dois mil anos depois, como um presente.

     Bertha Maria Julia cresceu em uma sociedade cujas ciências eram normalmente para os homens. Mulheres casadouras cosiam bordados. Mas Bertha não queria se casar, Bertha queria era ser Lutz, estudar anfíbios e participar das eleições. Lutz - a filha, e não o pai - sobreviveu a um golpe de Estado em 1937, a partir do qual nem mesmo os homens podiam votar, chefiando um Departamento de Botânica e cravando seu nome na ciência internacional.

     Em setembro de 2018 d.C. todos morreram juntos, pela segunda vez. Sim, todos arderam numa segunda morte. As labaredas da destruição da História consumiram tesouros da humanidade. Biológicos, antropológicos, históricos, artísticos.

     Morreram do quê?

     Acidente?

     Tragédia?

     Não.

   Morreram assassinados, calcinados por quem não os queria.

   Nada sobrevive aos interesses perversos do capital. Nem Luzia.


Alessandra Fahl Cordeiro Gurgel, Bacharel e Licenciada em História.
Professora na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.



Um pouco sobre um lutador chamado Aldo Santos

Conheci o Professor Aldo Santos pouco antes de 2007, num evento na Câmara Municipal de São Bernardo do Campo. Foram apenas um cumprimento,...