Luzia andava pelas
bandas das Gerais, antes de existirem as Minas. Nada era fácil, a sobrevivência
era um esforço que beirava a sorte, além do esforço. Sua vida não durou muito,
talvez uns vinte anos. Seu corpo ficou
calado numa gruta, até ser encontrado doze mil anos mais tarde e ganhar o
título de "primeira brasileira". Seu crânio foi ostentado como grande
descoberta, alterou o desenho de rotas migratórias e colocou o Brasil num
destaque arqueológico internacional.
Sha Amum Em Su cantava
em Karnak, no templo do deus Amon, oito séculos antes de Cristo. Quando morreu,
a tradição religiosa de seu povo cuidou para que o corpo da sacerdotisa cantora
fosse preservado e sua garganta protegida por um tipo de resina para que talvez
continuasse a cantar além da existência que conhecera. Milhares de anos depois,
sua múmia foi trocada por um livro para que um imperador que admirava o Egito a
trouxesse para casa.
Uma mulher que vivia na
Ilha de Marajó, perto da foz do Rio Amazonas, trabalhava em cerâmica artefatos
cheios de vida e graciosidade. Cada detalhe era planejado muito tempo antes de
existir o conceito de funcional. Cada peça possuía enorme identidade, muito
antes da Antropologia. Seu trabalho permaneceu conservado por quase dois mil
anos.
Um artista
desconhecido, cheio de talento, pintou afresco um lindo mural desenhando um
pássaro lá em Pompeia, no mesmo século de Cristo. Sua obra resistiu a uma
trágica erupção vulcânica e chegou ao Brasil, quase dois mil anos depois, como
um presente.
Bertha Maria Julia
cresceu em uma sociedade cujas ciências eram normalmente para os homens. Mulheres
casadouras cosiam bordados. Mas Bertha não queria se casar, Bertha queria era
ser Lutz, estudar anfíbios e participar das eleições. Lutz - a filha, e não o pai
- sobreviveu a um golpe de Estado em 1937, a partir do qual nem mesmo os homens
podiam votar, chefiando um Departamento de Botânica e cravando seu nome na
ciência internacional.
Em setembro de 2018
d.C. todos morreram juntos, pela segunda vez. Sim, todos arderam numa segunda
morte. As labaredas da destruição da História consumiram tesouros da
humanidade. Biológicos, antropológicos, históricos, artísticos.
Morreram do quê?
Acidente?
Tragédia?
Não.
Morreram assassinados,
calcinados por quem não os queria.
Nada sobrevive aos interesses
perversos do capital. Nem Luzia.
Alessandra Fahl
Cordeiro Gurgel, Bacharel e Licenciada em História.
Professora na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.
Professora na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.